terça-feira, 24 de junho de 2014

Testemunha de uma viciada

Para acompanhar a leitura: https://www.youtube.com/watch?v=ZMHoel8FIv0

-Senhores, estou aqui para pedir ajuda de vocês, senhores! Meu filho e minha esposa estão no Rio de Janeiro e eu não tenho como voltar. Senhores, vim fazer uma entrevista de emprego com a intenção de trazer minha família para cá, senhores. Fiquei cinco dias no processo seletivo e recebi uma ligação dizendo que não fazia o perfil da empresa. Eu sofro de uma doença, senhores, que por muitas vezes me faz sofrer pelo preconceito. Vejam, senhores! Uso esse boné para esconder, como vocês podem ver, senhores, meu coro cabeludo está todo escamado e meus cabelos caindo, senhores, eles caem na mão! Qualquer ajuda será bem vinda, eu já consegui quarenta e dois reais mas a passagem está setenta. Agradeço pela atenção dos senhores. tenham uma boa noite!
- Venha cá, descemos na estação Tiête e eu compro a passagem pra você! Não tenho dinheiro aqui, então passo o meu cartão.
- Mas eu preciso pegar a minha mochila no albergue, Senhora.
- Compramos para mais tarde, assim você pode ir e voltar sem problemas, a Tiête já é a próxima.
- Muito obrigada, senhora.

- Pronto, vamos até o guichê!
- Sim, senhora.
- Mas olhe pra mim...
- Sim, senhora.
- Vou passar no cartão de crédito, eu quero te ajudar, mesmo não tendo esse dinheiro, quero que esteja do lado da sua família, eles devem estar sentindo sua falta. Não está mentindo pra mim, está?
- Estou. Sim, senhora!
- Poxa...
- Olha, senhora, eu não iria fazer isso com a senhora. Vou falar uma coisa que nunca disse a ninguém, já fui pego por furto, senhora. Sou dependente químico.
- Rapaz, faz isso não! Ou faça... Mas pense bem! Não fará isso comigo mas fez com todos aqueles que lhe deram qualquer coisa que talvez também nem tivessem. Não se entregue, tão ruim se perder pela droga, tu é saudável, pode gastar teu tempo com tanta coisa diferente, não deixe isso te destruir. Vi meu amigo se matando aos poucos por causa de cocaína. O que o senhor usa?
- Cocaína, senhora.
- Procure uma ajuda, cuide de você.
- Sim, senhora, eu vou procurar sim. Muito obrigada, senhora, vou pensar em tudo que a senhora me falou. Vai pra tua casa senhora, me desculpe!

  
Então ele correu e eu fiquei ali parada. Ele correu como quem corria da morte, ele correu como quem está na abstinência e corre para mata-la. Ele correu com os olhos cheios d'água, correu com os mesmo olhos mirando o nada que antes miravam meus olhos sedentos por sinceridade. Os olhos que traziam o peso de toda a incompreensão e falta de atenção que o mundo pode ter, os olhos que não fitavam ninguém no discurso que houvera decorado, pois esses olhos não saberiam ser nada além de sinceros quando olham no fundo de outros olhos. Eu corri dentro daqueles olhos com ele ali parado, como quem corre da morte, como que está na abstinência e corre para mata-la. Então, como uma viciada, fiquei inerte, sentindo a droga fazer efeito dentro de mim, a sinceridade daquele homem me percorria as veias e penetrava cada célula. E um estímulo externo me fez enxerga o mundo de outra maneira, um preto e branco, sem vida, que coloria-se aos poucos. Então, ele fez-se mais importante naqueles dez minutos do que pessoas que passam anos ao meu redor. Foram dez minutos de nirvana. A eternidade fez morada em dez minutos de amor: sinceridade, respeito, entrega, compaixão, companheirismo. E hoje, corro ainda parada, buscando como viciada a sinceridade que provei nesse encontro que não foi em vão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário